Photo: Michael Schaffer

Retrospectiva 2020 ou a anatomia de um cansaço

Leonardo Castelo Branco

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É noite de 26 de fevereiro de 2020. O Brasil tem o primeiro caso confirmado de covid-19. O mundo está em estado de alerta; eu sinto uma espécie de letargia — quase uma negação. Mas a realidade vem a galope: uma amiga próxima perde sua avó logo após a chegada do vírus. O medo é real. A paranoia tem sentido.

Já é março e estou oficialmente isolado para balanço. Aglomeração só de pensamentos, ideais e projetos embrionários. Vivo um transe criativo. Faço diferentes e interessantes cursos on-line. Faço leituras temáticas: A estrada, de Cormac McCarthy, e Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva, estão entre elas.

Em abril, a vida torna-se uma grande vídeo-conferência. Em alguns dias, chego a fazer mais de 10 reuniões nesse formato. Os encontros com os amigos também se tornam virtuais — e eu compreendo da pior maneira o quão ruim é beber olhando para uma tela.

No feriado do dia do trabalho descubro que compras on-line são ótimas contra o tédio. Compro uma capa para iPhone com um material que simula o plástico bolha e um espanador de livros após me cadastrar no AliExpress.

É tarde de 26 de junho. É meu aniversário. Comemoro tomando um porre de bloody mary na varanda. Danço Le Freak, do Chic, quando me dou conta que estou sendo observado por vizinhos que gritam em uníssono: uhu-ai-ai-ai. Estranho o fato daquela rápida conexão me remeter a um abraço.

Tiro pequenas férias em julho. Prometo fazer desse um mês musical, escutando pelo menos uma música nova por dia. Crio playlists, danço em frente ao espelho, escrevo versos inspirados. Me apaixono perdidamente pelo soul e pelo funk — especialmente The Bamboos, The Limp Twins e Dojo Cuts.

Agosto traz angústia. Sigo na espera do momento que pode transformar tudo — e nada. Me faltam palavras, inspiração, foco. Passeio pelo Netflix como um turista que já viu todas as atrações de uma cidade. Estou saturado de lives e dos vídeos tutoriais no YouTube. Passo os finais de tarde conversando comigo e bebericando chá de hibisco.

Setembro começa com um regime de notícias e redes sociais. Chega dos mesmos olhares e perspectivas. Passo a ver coisas fotograficamente de novo. Dou tímidos bordejos com minha câmera em busca de cliques e insights que carreguem magia. Compro um gravador da Sony, a quem passo a confessar minhas ideias e devaneios em tempo real.

É outubro e não aguento mais as caras sonolentas na primeira vídeo-conferência da semana. Estou cansado; minhas olheiras arroxeadas e meu rosto inchado. Onde andará a empatia? Meu quarto é meu último refúgio. Passo horas trancado lendo e refletindo — nunca chego a uma conclusão.

Só no dia 5 me dou conta que é novembro. Os dias vêm e vão sem que se note. Estou brutalmente sentimental, escrevo longas cartas e poemas que nunca enviarei ou publicarei.

Finalmente, dezembro chegou: eu já não me reconheço mais. Estou pálido e acima do peso. Decido passar as festas sozinho, seguro e isolado em reflexões filosóficas. Não enxergo motivos para celebrações. Meu celular está cheio de mensagens que não quero ler — não agora.

Inicio o ano ouvindo o vento preencher o silêncio.

Os pensamentos estão menos barulhentos.

Mas ainda estou cansado.

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