Explosão de Expressão

Leonardo Castelo Branco
4 min readAug 23, 2021
Foto: @caitlinwynne

Dedicado à Sergio Sant’Anna

Um conto sem pretensões. A única, talvez, seja que aqui, neste conto, a realidade e a imaginação se incorporam em uma coisa só. O contista, esse ser que transita anarquicamente livre por esses dois mundos, é, ao mesmo tempo, grandioso e insignificante.

Contraditório como a vida, este conto é contornado por dúvidas que nunca serão sanadas. Um texto sem nomes, locais ou datas. Apenas um texto. Uma ferramenta literária que segue uma linha intuitiva de pensamento. Uma homenagem à arte escrita e um manifesto de um recomeço. O reencontro do homem decidido a sentir com o escritor decidido a registrar.

É ele (ou seria eu?) que guiará o seu olhar através de palavras enérgicas e, por que não dizer, eufóricas? Afinal, o contista acaba de despertar de um longo bloqueio criativo. Era um escritor sem matéria prima. Um homem sem ritual — e um homem sem ritual é um homem infeliz.

A rotina funcionava, até o dia que não funcionou mais. Era assim: coava um café, sintonizava um jazz baixinho e escrevia até cansar os dedos. As palavras saiam como num passe de mágica, como se já estivessem perfiladas em sua mente à espera do momento de brilhar.

Não se sabe o momento em que ele foi abatido por essa lepra vocábula. A hipótese mais plausível é justamente a rotina. Aquela de dias enfileirados em uma grande sequência de afazeres e responsabilidades: da casa pro trabalho, do trabalho pra casa. Comer, correr e morrer.

Uma vida sem inspiração e sem aspiração. Só existir. O contista fechou para balanço, mas, depois do balanço, continuou fechado. Abdicou da vida social e passou a habitar um micromundo dentro de outro micromundo. Era uma parte de si fingindo ser o todo. E continuava assim: comer, correr e morrer.

Talvez, tenha sido no dia que, enquanto escutava a uma entrevista de seu autor preferido, o jogo virou. Ouviu o escritor com voz anasalada dizer que o charme da vida está na surpresa — ou seria que o amor engrandece o homem? Enfim. Nada novo, nem sequer revolucionário, mas verdadeiro. O verdadeiro dito pela pessoa certa. Naquele momento, com os olhos cheios de lágrimas, o contista pediu ao seu mestre que guiasse sempre suas palavras. Foi uma espécie de prece dita em voz alta.

Quem sabe, a inspiração tenha voltado quando o contista mudou de endereço; não a mudança em si, mas o ato de transformar a casa em lar. A construção de um ambiente seu, com seus quadros, suas plantas, suas prateleiras com os seus livros. O pequeno, porém aconchegante apartamento, recém pintado de verde, é a representação de novos tempos e de novas emoções. Esperança, verde esperança.

Existe ainda uma terceira hipótese, talvez explicada pelo dever do ofício. Um dia, o contista perguntou para si mesmo: “no que você acredita?” A resposta foi imediata e irretocável. Na arte! Foi aí que ele se lembrou da sensação de sentar em frente à máquina, com os dedos flutuando sobre o teclado e o barulho sequencial e imparável das teclas fervilhando. Seu ritual de fazer arte.

Neste artesanato da memória e imaginação, em que tudo é impreciso e embaçado, o que se mantém intacto na mente do contista, devido ao frescor dos fatos, são as noites e madrugadas em seu novo quarto. Ali, deitado, mesmo cansado, criou o hábito de passar horas registrando com um toco de lápis pensamentos e sentimentos num Moleskine. Era o primeiro traço de mudança. Era, ainda que de modo precário, a escrita resgatando a vida.

E, de confidência em confidência, o caderno preencheu-se e tornou-se a base deste conto que, apesar de despretensioso e ambíguo, é escrito com apaixonada sinceridade. Um sentimento vivo e em ebulição: a inspiração, que se expande a cada leitura deste texto, momento de deleite em que o contista encontra novas perguntas, respostas, caminhos e atalhos. Escrever é seu processo de descoberta preferido — e ele acaba de redescobrir isso.

Este conto termina quase como começou, sem decifrar quando, porque e como — apesar de algumas hipóteses serem citadas. Uma narrativa que se manteve focada no campo dos sentimentos, das sensações e das dúvidas. Uma aventura intelectual que se deixa guiar pelos fantasmas da privação. O contista fez da falta de inspiração, inspiração.

Em sua última leitura, ele enxerga este produto literário como uma grande avalanche de desabafos, memórias, invenções, inspirações, autoconhecimento, fúria, paixão, retrabalho, amor, doença e cura. Uma explosão de expressão, de uma intensidade quase insuportável, mas necessária para que a natureza de sua criação seja destruída e reconstruída, de forma que chegue cada vez mais perto de uma inatingível perfeição.

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